jueves, mayo 15, 2003

Homens e micróbios

Nobel Joshua Lederberg,
escreve no EXPRESSO On-Line

A PRIMEIRA grande notícia científica deste século foi a campanha de descodificação do genoma humano.
Devemos agora recordar que grande parte da composição biológica do nosso corpo consiste em genomas que não são humanos. Multidões de bactérias e vírus vivem na nossa pele, nas nossas membranas mucosas e na nossa região intestinal. Provavelmente, desempenham um papel muito mais importante no desenvolvimento e na resistência às doenças do que aquele que nós imaginamos. Compreender esta co-habitação de genomas dentro do corpo humano, a que chamo microbioma, é fundamental para perceber a dinâmica da saúde e da doença.

Depois de um intervalo de algumas décadas, os germes e as doenças ocupam de novo muito do nosso pensamento, em grande parte por causa do terrível impacto da sida em todo o mundo. Temos também uma nova consciência de que doenças globalmente espalhadas como a tuberculose e a malária permanecem flagelos históricos. Agora mais perto de casa, a notícia é que novos surtos de doenças como a SRA (síndrome respiratória aguda) se espalham a partir da China para o resto do mundo, com consequências imprevisíveis neste momento.

Ao longo de toda a história, as doenças infecto-contagiosas regularam as nossas vidas. Só no século XX, graças a medidas de higiene simples como lavar as mãos regularmente e separar a água de beber das águas dos esgotos, assumimos um papel mais importante, para o bem e para o mal, na tentativa de controlar o modo como os micróbios afectam a vida humana.

Uma criança nascida em 1900 nos Estados Unidos tinha uma esperança média de vida de 47 anos. Mas, no fim do século XX, devido principalmente às nossas conquistas relativamente às doenças infecto-contagiosas, essa esperança já era de 80 anos para a mulher e mais ou menos 75 para o homem.

Desde os finais da década de 1920, a metáfora que adoptámos de forma optimista no que se refere ao nosso relacionamento com os germes foi a da conquista dos «caçadores de micróbios» sobre doenças específicas. Na década de 1960, apoiados nos medicamentos e nas vacinas milagrosos do meio do século, muitos afirmavam que «as pragas serão banidas da face da Terra para todo o sempre» -apenas para serem humilhados com o trágico advento da epidemia da sida, que nos mostrou como estamos realmente longe desse objectivo. É óbvio que o excesso de confiança em relação ao contágio foi um efeito secundário da nossa campanha contra os micróbios. Agora, a síndrome respiratória aguda é o novo desafio dos nossos dias.

Em vez do excesso de confiança, da metáfora da conquista e do conceito de erradicação das doenças infecto-contagiosas, há uma lição mais subtil a aprender: o melhor a que podemos aspirar é a uma relação de coexistência simbiótica com as bactérias, vivendo com elas numa «trégua» mais do que numa vitória. Essa coexistência pode desenvolver-se num espectro que vai da terrível pandemia letal até à tolerância mútua.

CARACTERÍSTICAS DOS MICRÓBIOS RELATIVAMENTE AOS HUMANOS

Os micróbios abundam em populações com expoentes de 15 e 20. Digamos que existem na ordem dos ziliões. Trata-se de minúsculos organismos que crescem e se desenvolvem em ciclos de 20 minutos ou menos. Os indivíduos são inteiramente dispensáveis quando uma comunidade de um milhar de milhões de células pode ser substituída do dia para a noite a partir de um único gérmen. Dezenas de biliões de células podem ser cultivadas num simples tubo de ensaio.

Em contraste, a espécie humana tem uma população de menos de 10 mil milhões, muito modesta à escala microbiana. Cada organismo é multicelular e grande, com um ciclo de desenvolvimento longo e custoso. Cada um de nós como indivíduo seria o primeiro a resistir a oscilações violentas do número da população. Nem a sociedade humana poderia florescer sem o cuidado e a protecção da maioria dos indivíduos.

Num maior contraste com as capacidades biológicas dos micróbios, estes permutam facilmente genes no seio da espécie e com outras espécies. Eles não formam novas espécies biológicas nem se diferenciam em organismos isolados geneticamente como nós.
A verdade é que estes microrganismos praticam «uma transferência promíscua lateral de genes», fazendo do mundo microbiano uma espécie de «world wide web» com base no ADN, que partilha informação genética que pode ir de um micróbio para outro.

Quando, por exemplo, os antibióticos entram na nossa rede de esgotos e matam alguns micróbios, é o mutante resistente ocasional que sobrevive. Estes sobreviventes conseguem depois transferir a sua recém-descoberta imunidade aos genes de outros micróbios, incluindo espécies patogénicas que fomentam as doenças humanas.

Os seres humanos não obtêm qualquer vantagem biológica de inovações que evoluíram em aves, ratos ou macacos – excepto o facto de agora termos uma inteligência evoluída que consegue criar uma rede informativa para aquisição e partilha de informação ou de ideias.

Estes micróbios rapidamente evolutivos podem coligar-se nos seres humanos através de sinergias de organismos que provocam doenças ligeiras, mas que, quando juntos com outros, se tornam perigosas. Este pode ser o caso da SRA, que parece uma variante de um vírus da gripe comum.

Para além de estarmos isolados geneticamente das outras espécies, as células da linha de micróbios humanos estão isoladas nas nossas glândulas sexuais, protegidas da maioria das vicissitudes do corpo. Nada que esse corpo possa aprender para criar imunidade por exemplo, contra novo vírus pode ser transmitido através de um espermatozóide ou de um ovo para a geração seguinte. As novas gerações têm de aprender tudo outra vez, num novo ciclo.

Em resumo, as vantagens evolutivas competitivas parecem estar muito mais a favor dos micróbios. Vemos esta disparidade quando grandes pestes e epidemias varrem o mundo.
Tudo levaria a crer que a capacidade evolutiva dos micróbios nos devia ter derrotado há muito tempo.

Então porque não o fizeram? Porque é que estamos ainda aqui, partilhando o planeta com os micróbios? Eles não nos exterminaram porque têm interesse na domesticação e na sobrevivência do hospedeiro os seres humanos e outras criaturas multicelulares. Um micróbio que mata o seu hospedeiro é um micróbio sem futuro. Se for um conquistador vitorioso, extingue a sua vida tal como a nossa. Biologicamente falando, a razão por que ainda estamos aqui é que os parasitas necessitam de hospedeiros vivos para a sua própria sobrevivência.

AS REGRAS BÁSICAS

Esta realidade permite-nos identificar algumas das regras básicas do sucesso evolutivo no mundo dos microrganismos – as regras fundamentais do comportamento dos parasitas.

Até parece que leram a Bíblia e conhecem o Génesis: ide e disseminai-vos como primeira regra. Multiplicai-vos. Em seguida, de acordo com o malthusianismo ou o darwinismo, têm de ser os mais aptos para sobreviver a garantir a maior descendência possível. Depois confrontam-se com um dilema: se exterminarem o seu hospedeiro com demasiada rapidez, não conseguirão propagar-se. Mas, claro, também têm um imperativo de garantir um local de alojamento no hospedeiro, uma cabeça-de-ponte, combatendo as defesas locais e estabelecendo um reservatório para disseminação. É isto que se passa com a doença tal como é sentida pelos seres humanos: a criação de uma base de operações, de maneira que o hospedeiro servil lhe forneça comida quente e abrigo e seja domesticado ao serviço do parasita.

Os sintomas de doença que vemos são muitas vezes secundários para o nosso mecanismo de defesa, mas são explorados em nome da capacidade do parasita de se multiplicar.

Por exemplo, logo que um organismo como o da cólera entra no nosso intestino, provoca a diarreia mais intensa que se pode imaginar. Para dar origem à diarreia, a cólera segrega uma hormona que resulta na libertação de água no intestino. Enquanto o paciente entrar no jogo de uma re-hidratação intensa, é possível equilibrar a perda de líquido, sobreviver, mas também disseminar micróbios aos biliões.

A cólera não «quer» fazer-nos mal, mas a sua sobrevivência como espécie depende da poluição das fontes de abastecimento de água. A doença é então transmitida a outros hospedeiros. Se pudesse prosseguir sem nunca matar o hospedeiro seria o ideal.
Efectivamente, com hidratação adequada, a cólera não tem uma taxa de mortalidade muito elevada. Essa ideia escapou-nos durante 75 anos por não compreendermos que uma «hormona de secreção de água» era tudo o de que necessitávamos para entender como actua a cólera. Por isso é justo dizer que milhões de vidas foram reféns de uma filosofia errada da doença.

Por vezes, um micróbio poderá mesmo proteger o hospedeiro de outros elementos patogénicos concorrentes. Exemplo disso na investigação da sida é a descoberta de que o contágio com uma variante do vírus da hepatite C parece estar relacionado com uma considerável resistência ao progresso do VIH. Não surpreende que um vírus tente expulsar outro. Faz parte da sua estratégia para manter a vantagem competitiva.

A melhor estratégia de todas é fundir-se com o hospedeiro e tornar-se parte do seu genoma.

Após uma tão longa evolução, nós carregamos de facto cerca de 500 retrovírus diferentes integrados no nosso próprio genoma, que são testemunhos de uma história de experiências com parentes do vírus VIH. Após milhões de anos, os antigos vírus que encontramos agora desempenham funções indispensáveis de defesa para o hospedeiro.

CONTENÇÃO

Em resumo, os micróbios que co-habitam o nosso corpo dão mostras de uma contenção considerável ao moderarem a virulência da doença, especialmente em relações bem identificadas com hospedeiros animais. Elementos patogénicos sistémicos como os estafilococos e os estreptococos, que há muito invadiram e vivem dentro do nosso corpo, raramente segregam toxinas fatais. Em consequência, provavelmente um terço de nós anda por aí como portador saudável destes micróbios.

MICROBIOMA

Alargaria, portanto, os nossos horizontes filosóficos pensarmos um ser humano, um espaço corporal em qualquer humano, como mais do que um organismo. É um superorganismo com um genoma alargado, que inclui não apenas as próprias células mas também o conjunto de bactérias e vírus do genoma microbiano flutuante que partilham esse espaço corporal. Alguns destes antigos invasores passaram a viver em permanência nas nossas células, atravessando mesmo a fronteira e tornando-se parte do nosso genoma. Chamo a esse alargado conjunto de companheiros o microbioma e rezo por uma investigação mais profunda sobre o impacto que eles têm nas nossas vidas, para além dos acessos ou dos tropeções a que chamamos doença.

Compreender isto significa que vivemos num pacto de colaboração, «uma trégua» com esses micróbios que não nos matam.

IMPLICAÇÕES

As implicações do nosso novo entendimento são precisarmos de mais investigação, não apenas sobre a virulência das bactérias mas sobre como elas «contêm» a virulência e moderam os ataques. Precisamos de investigar como a nossa flora microbiana –aquela com que nós vivemos sempre -não causa doenças e, em vez disso, nos protege dos seus concorrentes.

Outra implicação é que, filosoficamente, temos de desconfiar sempre do conceito de erradicação, de espetar uma estaca no coração de uma infecção bacteriológica de uma vez por todas. Num mundo assim, não teríamos a experiência crua de alojar estímulos infecciosos e tornarmo-nos mais vulneráveis.

Vemos um exemplo disso, hoje, nos nossos dilemas a propósito da varíola. Pensávamos que a tínhamos erradicado e, efectivamente, tínhamos uma política mundial que pressupunha a sua total erradicação. Como resultado, baixámos totalmente as nossas guardas, tornámo-nos imunologicamente ingénuos e suspendemos toda a investigação sobre a melhoria das vacinas e dos medicamentos antivirais que poderiam ter atenuado uma recorrência acidental ou com intenção criminosa. Agora apressamo-nos a colmatar a lacuna.

Finalmente, temos de compreender que a higiene pode por vezes não ser uma coisa boa se for exagerada. Na tentativa de ter ambientes infinitamente puros podemos por vezes privar-nos dos estímulos de que o nosso corpo necessita para se tornar «inteligente na rua» e desenvolver defesas contra a contaminação.

JOSHUA LEDERBERG**

Joshua Lederberg ganhou o Prémio Nobel em 1958, aos 33 anos de idade, pelo seu trabalho pioneiro sobre a mutação genética das bactérias. Foi presidente da Universidade Rockefeller, em Nova Iorque»

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Tradução de AIDA MACEDO
12:47 15 Maio 2003